Abaixo do radar, a 30 mil pés. 

Post atualizado com essa foto linda que tirei no MT no final de 23.

Tente imaginar a seguinte situação: você está dirigindo em uma BR bastante movimentada, o fluxo é grande, um carro atrás do outro. O ponteiro já marca 120km por hora, ou seja, não dá pra vacilar, você não pode tirar as mãos do volante e não deve tirar os olhos da linha reta a sua frente.

De repente, uma placa na lateral direita da pista avisa: Serra a 1 KM.

Acontece que você nunca esteve ali antes, portanto, vai descer aquela serra pela primeira vez, não há tempo para reconhecimento de pista. Só vai.

Seria normal pensar: “ok, vou diminuir a velocidade para entrar com mais segurança”, mas de repente, você percebe que o carro de trás está te pressionando a continuar naquela velocidade constante.

Ele segue muito veloz na sua cola, por mais que as placas tenham avisado que a velocidade máxima ali é de 60km/h e, por mais que você sinta o perigo que o espera à frente, lhe parece que diminuir a velocidade não é uma opção, já que o motorista do carro atrás não para de acelerar.

Bom, como certamente é previsto, começam a aparecer algumas curvas perigosas no caminho e você pensa: “agora ele vai diminuir a velocidade e eu poderei reduzir também”. No entanto, o carro que vem atrás não parece hesitar, ele mantém e, consequentemente, impõe o mesmo ritmo.

As placas orientam que a velocidade permitida é de 60km, mas ele está forçando você a dirigir em um ritmo de 100km por hora. A situação está ficando perigosa, você se sente sufocado, inquieto, sente medo, sente ansiedade, sente que não está mais no controle e sim o cara de trás.

Porém, se o tempo congelasse essa cena por 5 minutos e você pudesse olhar de forma aprofundada para dentro de si, perceberia que, ao mesmo tempo em que sente medo, você também não quer demonstrar-se inferior ao motorista de trás, pelo contrário, você quer dizer que também consegue, quer passar segurança ao volante e, com isso, coloca a sua própria segurança em risco atingindo limites antes desconhecidos pelo seu corpo. Bem-vindo ao jogo…

Enquanto olhava para o retrovisor conferindo quão perto estava o outro veículo, você entrou rápido demais em uma curva, sentiu seu carro vibrar, sentiu as rodas se descolarem levemente do chão e, pela primeira vez, encontrou-se apavorado porque sabia que na velocidade em que estava, você não teria muitas chances se o seu carro perdesse completamente o controle. Você segurou firme e, pela primeira vez, conseguiu pisar no freio deixando de lado a soberba e a ambição de querer estar sempre à frente.

Acontece que quando você freou, algo aconteceu, o carro de trás freou também, afinal, ele não tinha a menor intenção de bater no seu veículo ou provocar um acidente, ele estava apenas testando o seu limite para ver até onde aquele ritmo frenético e automático te levaria.

Bom, depois do susto, logo à frente você avista um acostamento, pensa em aliviar a tensão, liga a seta, entra à direita, e se depara então com um mirante incrivelmente lindo, uma verdadeira recompensa no fim do arco íris.

São belas paisagens, uma montanha enorme totalmente coberta por diferentes tons de verdes alertando que ali existe uma natureza viva.

Então, ao observar a imensidão que se apresenta a sua frente, você pensa que nada pode ser mais bonito do que a grandeza e beleza do sublime.

Respirar esse ar puro olhando para os tons verdejantes da mata te dá uma sensação de leveza, liberdade, paz de espírito e alívio que há tempos você não sentia mais.

Você pode se perguntar há quanto tempo esse mirante esteve ali, persistentemente lindo, no mesmo lugar, transmitindo a mesma paz.

Agora, calcule quantas pessoas passam por essa mesma estrada sem nunca o terem notado, correndo, velozes, carro atrás de carro com velocidades cada vez mais ultrajantes.

Somente quando paramos na beira da estrada para apreciar a grandeza de uma montanha, é que podemos ver o quanto somos comparativamente pequenos. Quando olhamos a imensidão do mar, vemos com clareza o quanto nós exageramos a nossa importância (e sofremos por isso). Afinal, somos minúsculos diante da potência do oceano, e não importa o título que carregamos no peito, somos todos iguais em frente ao mar: pequenos, e inteiramente dispensáveis.

Chego a conclusão de que a vida é como pegar descendo uma serra, você nasce com a cartilha de que precisa entrar na escola aos 6 anos, sair dela com 17, então você tem que entrar na faculdade, porque parar um ano é desperdício. Sem tempo, irmão!

Ainda na faculdade você precisa estagiar além, é claro, de ter que encontrar seu grande amor no meio desse turbilhão.

– Saiu da faculdade? E o casamento? Já marcou? Tá exercendo a profissão que estudou? Ganha quanto? Já tem casa própria? Tem que comprar um carro melhor! Vai viajar pra onde esse ano?

Se você é mulher então, vixi, é velocidade dobrada… tem que dar conta dos estudos, casa, marido, trabalho…

– E os filhos? Vão vir quando? Tá ficando velha! Vai ter problemas na gravidez. Não tá comendo demais, não?

O fato é que tem sempre pessoas no carro de trás tentando ditar o ritmo de nossas vidas e influenciar nossas escolhas.

E você, até por ser jovem demais quando começa rodar nessa BR, não se questiona muito sobre o que vai acontecer se pisar no freio, você simplesmente segue dirigindo na velocidade que lhe é imposta, sem perceber que estamos ficando cada vez mais sem tempo nesse nosso caminho rumo à morte.

——

Durante muito tempo eu quis ser a número um em tudo que eu fazia, meu pai me dizia que eu precisava ser a melhor em tudo e não por maldade, mas óbvio, por conhecer a realidade de nossas vidas. Ele sonhou pra mim um futuro diferente e me colocou pra dirigir nesta sinuosa BR que é a vida.

De repente, eu já estava lá, querendo mais velocidade, eu me via flertando com o perigo que era correr mais do que as pessoas ao meu redor, porque eu me comparava com esse círculo vicioso e pensava, “já tô atrasada”! Cadê minha casa? Cadê o carro? Cadê os filhos?

Eu estava descendo uma serra desconhecida pela primeira vez e então, numa curva perigosa, eu senti que talvez eu pudesse nunca mais ver aquela paisagem novamente e me perguntei: se isso acontecesse hoje, que boas lembranças eu levaria daqui?

Que boas memórias eu deixaria para aqueles que amo?

Eu faria diferente se tivesse uma outra vida?

Eu saberia que aqui era um lugar de natureza viva? Ou eu estaria ocupada demais com as mãos no volante, olhando fixamente para a linha reta, sem sequer notar a riqueza que existia ali em minha volta?

Então, com mais medo do que coragem, resolvi sair para o acostamento e pude contemplar a beleza da calmaria, foi como um descortinar de coisas simples e, proporcionalmente incríveis, que estavam ao meu redor.

Quando olhei novamente para a BR, percebi que os carros continuavam passando rapidamente, sem hesitar, sem frear, sem olhar pro lado e sem notar que nós só percorremos essa estrada uma única vez, pelo menos com a consciência de hoje e com as pessoas de hoje, ou seja, nesta vida, nós só temos uma vida, e só o que há nela.

A ambição é combustível sim, mas também pode ser uma fonte de angústia e inquietação que vai assombrar a nossa curta existência sobre a terra, nos fazendo enxergar uma longa e dolorosa trilha entre o que estamos fazendo e o que achamos que somos capazes de fazer e, normalmente, nós achamos muito de nós mesmos.

Nós causamos nossos conflitos internos criando atritos entre nosso tempo limitado e desejo ilimitado de ser e fazer, desejos esses que muitas vezes nem são nossos de fato e que nos impedem de enxergar que o mundo já era mundo antes de nós e ele continuará sendo o mesmo quando deixarmos de fazer aquilo que achamos que só nós podemos fazer, ou até mesmo quando deixarmos essa existência aqui e então ocorrer o que já dizia Marx: “tudo que é sólido se desmancha no ar”.

Quantas vezes você parou para pensar que só tem essa vida? Sim, porque eu tenho que pensar isso quase todos os dias.

Quantas vezes você já pensou que nunca mais vai ter outra mãe? Que nunca mais vai ter outra semana como essa.

Não importa quantas vezes você venha à orla para ver o pôr do sol, ele nunca será o mesmo. O pôr do sol de ontem já se foi, ele durou apenas alguns minutos e se foi pra sempre da sua vida.

Quantas vezes você já pensou que você é só um número numa esteira? Que é só um carro qualquer descendo a Serra?

Já pensou que o que você vai levar daqui não são as coisas, não são os títulos, aliás, você não leva nada, além de uma muda de roupas que nem mesmo será escolhida por você.

A gente só deixa.

E o que deixamos aqui são as memórias do que fazemos com o nosso tempo e o tempo, ele é feroz, é implacável.

O tempo existe independente de nossas ações e ele passa, com ou sem nenhuma atividade de nossa parte.

O tempo dessa vida, com as pessoas que temos aqui, é muito curto para desperdiçarmos em uma BR que anda rápido demais, só porque os motoristas estão todos ligados no automático.

Eu saí pro acostamento. Mas essa não é uma decisão fácil, ou rápida, ou qualquer coisa que qualquer coach charlatanista tente te vender por aí.

Essa é uma decisão diária e consciente.

Quando eu descobri que toda manhã é um dia inteiro pra alguém que vive só pela metade, eu resolvi viver por inteiro todos os dias da minha vida.

Eu escolhi ter como prioridade construir uma horta no fundo do meu quintal, ao invés de me tornar especialista em algo para ganhar aplausos e tapas nas costas de pessoas que eu nem conheço.

Eu escolhi acordar de manhã e fazer uma meditação antes de estudar, ao invés de optar pela ineficiência de “me atualizar sobre o mundo” por meio das redes sociais, o que me fazia já começar o dia me comparando com outras pessoas que nunca calçaram os meus chinelos.

Eu escolhi ter poucos clientes e mais liberdade durante a minha semana.

Escolhi ter menos dinheiro e não trabalhar nas segundas e sextas-feiras.

Tenho escolhido todos os dias o menos ao invés do mais, e o mais ao invés do inútil.

Antes eu falava que queria que o meu dia tivesse 48h, hoje eu tenho tempo de sobra para não fazer nada.

Alinhei a minha expectativa comigo mesma e o que era importante pra mim nessa vida, aquilo que eu não vou passar sem realizar. Com isso, eu logo percebi que, de todas as coisas que eu fiz, as que eu deixei de fazer, eram sempre as mais importantes.

Posso dizer que me lembro até hoje do dia em que uma chave virou na minha cabeça e não, não foi em um dia lindo contemplando o nascer do sol embalada pelo som de pássaros, foi bem menos interessante que isso, num almoço despretensioso, numa conversa com um dos amigos que eu mais pude aprender naquela época, Guilherme é o nome dele.

O ano era 2017, mas eu lembro como se fosse em um almoço de ontem, estávamos no finado Frida (restaurante da região que trabalhávamos juntos), Guilherme me explicava a forma que ele via a vida, quais eram os objetivos dele e como ele vivia para alcançá-los.

Ele traçou imaginativamente uma linha na mesa enquanto falava que na vida, o caminho jamais seria em linha reta e, por mais que em algum momento você, por necessidade ou por distração, se afastasse daquela linha, quando se tem um objetivo claro, você voltaria até ela.

Por mais que a linha desenhada por Guilherme fosse invisível, ela se materializou na minha frente, aquilo era tão tangível que ficou gravado em mim desde então.

Até aquele momento, eu tinha vontades próprias em objetivos soltos. Tinha sonhos íntimos e ambições apropriadas. Eu tinha as melhores intenções e todas bem definidas, mas daquele tipo que fica bem só no papel, sabe?

Eu as colocava em um terreno bem distante, como se fosse uma caixinha de coisas pra eu realizar depois que a vida desse certo – como se a vida pudesse ser reservada para algo grandioso, “um dia” – sem me dar conta que a vida já deu certo e que ela tá rolando, tá acontecendo todos os dias.

Eu tinha sonhos e projetos escondidos no meu interior e hoje sei que jamais seria capaz realizá-los, porque afinal, havia uma BR longa (que me era imposta) para percorrer. Mas depois daquele almoço e da visão de Guilherme sobre a vida, algo se transformou dentro de mim, eu resolvi então que abriria essa caixinha e reorganizaria todos os meus anseios, colocaria tudo isso em planejamento e, logo depois, poria os planos em uma mochila, com ela em minhas costas, iria traçar meu caminho, aos poucos, lentamente, mas com um norte muito bem delimitado (Guilherme amava usar a palavra delimitado na época).

Eu assumi um compromisso comigo mesma de que, por mais que às vezes a vida – por necessidade ou distração – me levasse pra longe daquela linha, eu iria abrir a mochila onde encontraria o mapa do destino que eu havia planejado pra mim. E assim eu segui…

Hoje, falo aqui do início de 2023, faz pouco mais de um ano que eu me sinto em plenitude total comigo mesma.

É uma felicidade inabalável, inquestionável, uma felicidade viva que acontece todos dias e que me envolve.

A felicidade de ver passarinhos dançando e tomando água no meu quintal, felicidade de tocar os projetos pessoais e sociais que eu me propus a fazer, felicidade na chuva que cai e na água que respinga no chão e volta de forma não linear.

FELICIDADE, em caixa alta.

Faz pouco mais de 2 anos que eu saí pro acostamento de forma consciente e pude contemplar o sublime. Se somados aos 2 anos desde que aconteceu aquela minha conversa com Guilherme, então já se passaram 4 anos.

O que posso dizer que aprendi ao longo desse tempo, é que ninguém vai além vivendo como um relógio de parede, preso sempre as horas que doamos aos outros, que nunca são nossas.

Notas para o futuro: Eu deveria agradecer a esse amigo, assim como me agradeço por ter priorizado o que realmente era importante pra mim. Sinto que a vida não teria sentido se não estivesse onde estou e indo para onde vou.

Devo nos agradecer por escolher, sim, viver a vida abaixo do radar – em uma contemplação plácida – mas por outro lado, me sentindo como a 30 mil pés.

Eu realmente amo voar.

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