“Outro dia a infância dominou meu coração. Gastei o dinheiro que eu ganhei com o álbum do timão. Queria ser criança normal que ninguém pune, que pula amarelinha, joga bolinha de gude”.

“Eu não pedi pra nascer”, esse foi um dos primeiros raps que escutei ainda bem adolescente. Lembro que foi logo após uma discussão acalorada que envolveu alguns familiares: uma tia, meu tio mais novo, meu irmão e eu.
Na época, eu tentava proibir o acesso de meu irmão mais novo a esse estilo musical, porque na ignorância da minha criação (muito pautado em berço evangélico), eu pensava que as letras carregavam apologia a crimes e poderiam influenciar meu irmão para um caminho que não era correto.
Sim, nascida e criada em uma cidade do interior de Rondônia, onde na época, naquele lugar, não existia miséria ou violência escancarada e se conhecia por nome os 03 ou 04 moradores de ruas da cidade, eu ignorava totalmente outros fatores importantes que levam os nossos jovens à criminalidade como a fome, a falta de incentivo a cultura, a falta de educação adequada, a falta de amor, falta de oportunidade, de atenção e uma lista infinita de outros componentes que hoje tenho plena consciência de que servem como base para a formação e, igualmente, bem como sei que a falta desses elementos, servem como incentivo a colocar os jovens no caminho errado.
Na época, do alto dos meus 12 anos, eu ainda não tinha essa consciência e acreditava que uma música, bem como, andar em más companhias, andar de regata larga e bermuda caindo, poderiam ser sinais de alerta de que meu irmão mais novo estava se perdendo. hahahaha #shame.
Bom, voltando ao dia do rap, depois de uma discussão acalorada entre meu tio – que saia do banheiro cantando essa música e se dirigia ao quarto dos homens (na época, na casa da minha vó tinha o quarto dos homens, o das mulheres e o da minha vó) – e minha tia, que dizia a ele que aquilo não era um bom exemplo para meu irmão, que por sua vez, estava em qualquer canto da casa fazendo qualquer coisa. Eu só me lembro de meu tio mencionar algo que deveríamos primeiro conhecer antes de falar, já que a “música era melhor do que muitos hinos”. Eita! Chamou pra briga real.
Então, eu me deixei levar pela curiosidade e coloquei a música pra tocar, logo nos primeiros estrofes já fiquei um tanto embaraçada como aquela música poderia descrever tão bem a dor e tristeza de uma criança, e meu Deus, como uma criança pode conhecer esse tipo de dor na primeira infância: “minha mão pequena bate no vidro do carro, nos braços se destacam as queimaduras de cigarro”.
Não contive as lágrimas ao ouvir o som da glock interrompendo a batida em uma pausa dramática indicando o fim (a morte) de um adolescente, mas também o começo de uma vida em liberdade daquilo que ele chamava de família.
Sem sombra de dúvidas, a letra dessa música foi a porta de entrada para que eu pudesse descobrir que “rap é compromisso”!
Um estilo musical que nos traz de volta a realidade, ou melhor, que escancara uma ferida ainda aberta do nosso Brasil que, para muitos de nós, é totalmente desconhecida. Não à toa, desde os meus 12 anos esse é um dos estilos musicais que mais me fizeram aprender e repensar algumas verdades absolutas que pregamos por aí. Além de compromisso, o rap nacional é o ensinamento de tudo aquilo que não aprendemos nas escolas, sobretudo em questões sociais, políticas e culturais.
Esse estalo aconteceu dentro dessa situação específica e foi tão marcante que até hoje não consigo me esquecer.
Não à toa, ele me vem à mente novamente agora, depois de 18 anos, enquanto reflito sobre uma situação que levou meu sorriso há pouco mais de uma semana.
Hoje, em 03/07/22, há quase 1 mês do ocorrido, consigo falar sobre ele sem me desmanchar em lágrimas e achei importante escrever para organizar minha cabeça e também para que no futuro, em dias bons, eu nunca esqueça o motivo da minha existência, quais são as minhas prioridades e no quê eu acredito.
Era quinta-feira, eu havia trabalhado bastante naquela semana, afinal iríamos passar o dia dos namorados no domingo em uma outra cidade, eu sai para fazer as compras do jantar, André ficou em casa trabalhando e adiantando algumas coisas para viajarmos.
Na volta, obviamente sem querer eu atropelo um meio fio, raspo o peito de aço do carro e, com o susto, resolvo parar e descer um pouco para recuperar o ar antes de ir pra casa.
Logo que desço e vou em direção ao para-choque para conferir se ocorreu algo mais grave, dois meninos me abordam, perguntam se eu aceitava um panfleto, digo que sim, e pergunto do que se tratava e porque eles estavam entregando aquilo, logo iniciamos um diálogo:
- Foi o cara ali do carro de trás que deu pra gente entregar.
Olho para o carro de trás, um pálio weekend antigo coberto por um banner que anuncia algo sobre empréstimo facilitado para negativados.
- Como é seu nome? – pergunto ao menino que me olhava com olhos de jabuticaba
- É Alexandre e o da senhora?
- Senhora tá no céu, mas eu me chamo Priscila! – e dou-lhe um sorriso -. Então, pergunto:
- Alexandre, porque você está entregando esse panfleto a uma hora dessas da noite, menino?
- É pra comprar leite pra minha priminha, ela tá ali na frente do mercado com a minha mãe, a minha prima quer que minha mãe fique com ela para criar…
Alexandre começou a falar sem muitas pausas, quase atropelando a história, talvez com receio de que eu o interrompesse e não o deixasse terminar, talvez pelo fato de que poucas pessoas paravam para escutar Alexandre. A verdade é que eu não sei o motivo, mas quis ficar ouvindo o que ele tinha a dizer e o estimular para que falasse mais.
- Que família grande, cara. A minha família também é bem grande, assim como a sua. Vocês moram aqui perto?
- Não, eu acabei de chegar aqui, porque moramos lá no Benedito, saí da escola e fui pra casa, minha mãe já estava me esperando pra vir… tia a senhora vai no mercado?
- Não, porque? Você precisa de algo?
- Se a senhora fosse, eu ia pedir um leite pra dar pra essa minha priminha, ela não consegue comer nada e só toma leite, então ela precisa de leite o dia inteiro…
De repente, nossa conversa foi interrompida por uma das crianças que veio da direção da mãe para chamar Alexandre de volta e dizer que estavam chegando mais carros lá atrás e que eles deveriam ir para entregar os panfletos.
Por alguns segundos, fiquei com receio de perder Alexandre ali, mas ele disse, “eu já entreguei bastante, toma aqui os meus, pode ir lá você”, e o outro garotinho saiu correndo.
Meu amiguinho quis ficar e então continuamos o papo, eu retomei nossa conversa dizendo:
- Então, não vou entrar no mercado, só parei pra ver o carro, cê acredita eu acabei de bater ele no meio fio ali atrás? Mas eu estou vindo de outro mercado e tenho alguns leites no porta mala, posso te dar e você leva pra sua priminha.
- Muito obrigada tia, ela chora tanto e grita às vezes, dói minha cabeça.
Rimos um pouco e eu perguntei: e você? Também chora às vezes?
- Ah! Eu choro quando tô com saudades da minha prima.
- Dessa priminha? Pergunto eu…
- Não, da outra que também morava com a gente, ela tem 3 anos, morou com a gente desde que nasceu, eu que cuidava dela, mas agora o pai dela levou ela embora.
- Que triste Alexandre, levou pra longe?
- Sim, lá pro (não consegui entender o nome do bairro).
- Ah, mas é aqui em Maceió mesmo, então você pode ver ela de vez em quando.
- Quando eu choro muito, meu vô liga pro pai dela e ele coloca ela no celular, então eu falo com ela e fico com menos saudade. Mas eu queria que ela morasse com a gente de novo.
- Alexandre, você já comeu hoje? Eu tô pensando que talvez eu precise entrar no mercado sim (pensei que ele pudesse estar com fome, entraria para comprar alguma coisa).
Então ele me olhou envergonhado, ensaiou pedir algo, mas se calou. Foi como se ele tivesse sentido vergonha de pedir o que iria pedir, por isso, eu o incentivei:
- Pode falar, Alexandre, quer alguma coisa, pode ser qualquer coisa (porque na hora pensei que ele pudesse pedir um chocolate, ou alguma outra coisa que não fizesse parte das necessidades básicas que deveria estar acostumado a ser orientado a pedir, e por isso, estava com vergonha).
Nessa hora, ele surpreendeu a linha de pensamentos que eu traçava e me disse:
- Tia, só se a senhora puder eu queria uma caixinha de lápis de cor.
Até hoje, quando recupero essa lembrança em minha memória, é impossível conter as lágrimas. A única coisa que conseguir dizer foi:
- Uma caixinha de lápis de cor, Alexandre?
- É, eu não tenho, e às vezes as tias pedem pra gente pintar na escola e eu quero pintar, mas não tenho lápis colorido.
- E as professoras não te emprestam os delas?
- Elas também não tem, daí eu tenho que pintar com o lápis normal, mas fica sem cor
- Você gosta de ir pra escola, Alexandre?
- Sim, mas eu só vou 3 dias – depois descobri que ele ia de quarta a sexta
- Porque 3 dias só? O que você faz nos outros dias da semana?
Pronta para dar um pequeno sermão sobre a importância de não faltar à escola, só que no alto da minha ignorância, eu não esperava o que viria.
- É que a gente só tem 1 caderno, eu e meu primo, esse que tava aqui, então ele vai pra escola nuns dias e eu nos outros, assim os dois estudam.
Que sermão cabe no fim de uma frase como essa?
Nossa conversa continua, minha voz já está mais baixa, embargada, segurando pra não chorar na frente dele.
- E você gosta de desenhar também, ou gosta mais pintar?
- Gosto! Mas eu prefiro a parte de pintar.
- Tá bem, vou lá pegar seu lápis de cor e já volto, me espera aqui, tá bem?
Eu saí de perto do Alexandre e atravessei a rua.
Quando encostei no mercado, os seguranças estavam retirando vários pedintes que ficam ali na escadaria do estabelecimento, sob a alegação de que estavam importunando os clientes, pude cruzar o olhar com a “mãe” do Alexandre que estava falando alto com os seguranças, senti que ela me olhou como se questionasse o motivo de eu estar conversando tanto com ele.
Eu senti como se ela me culpasse por algo, talvez fosse eu mesma me punindo por ainda não estar fazendo nada que pudesse mudar a realidade de outros Alexandres, já que vim morar nessa cidade para isso.
Então entrei no mercado e sai em busca do lápis de cor, pelo caminho, tudo que eu imaginava que Alexandre precisava ou gostaria, eu ia colocando no carrinho.
Já em desespero por não encontrar a bendita caixa de lápis de cor, recorro a um repositor e pergunto onde fica a seção de material escolar.
Ele disse que não tinha, que só tinha cola, folha de sulfite e talvez caneta bic.
Pensei: “meu Deus, qualquer mercadinho de esquina tem material escolar”!
Então olhei ao redor e bem, eu não estava em um mercadinho de esquina, de fato, estava em um mercado classe A, na beira da praia, com muita gente fina e rica, muitos turistas… material escolar não era a prioridade daquele público, assim como Alexandre também não é prioridade pro nosso poder público.
Então, mesmo com o carrinho cheio, caixas de leite, de chocolates e de toda “futilidade” que eu pensava que preencheria aquele coraçãozinho tão pequeno, eu senti que estava voltando de mãos vazias para Alexandre. Tão inútil, que antes nem tivesse parado o carro.
Fui dizendo, “Alê, não tinha lápis de cor, a tia não tem dinheiro em espécie para que você possa ir comprar, mas eu vou procurar aqui perto e vou te encontrar de novo pra te entregar, enquanto isso, a tia comprou algumas coisas pra você levar pra casa, e essa sacola em especial é sua, é por você gostar de estudar, gostar de desenhar. Que tal tentar desenhar esses desenhos da embalagem? Eu vou adorar ver se você desenhar, e não desiste da escola, tá?”
Nisso, a mãe dele e várias outras pessoas vieram pegar as coisas, eu fui me afastando, porque não pude mais segurar o choro nesse momento e notei que isso assustou um pouco meu amiguinho que não me disse nada. Parecia que ele não tinha entendido uma palavra do que eu falava, ou sei lá, ele só me olhava com aqueles olhos de jabuticaba que eu nunca vou esquecer.
Entrei no carro e dirigi algumas quadras até chegar em casa, vazia, sem nada.
Sabe quando a chuva cai tão forte que o limpador na velocidade máxima não dá conta de desembaçar o vidro do parabrisa? Assim eu me senti tentando limpar as incontroláveis lágrimas que desciam sem que eu pudesse conter ou controlar.
Quando cheguei no estacionamento, permaneci por quase 1h dentro do carro chorando e pensando que maldito mundo é esse que vivemos?
Maldito o mundo em que as crianças não têm o seu direito garantido.
Maldito os governos que não estão preocupados em mudar essa realidade pelo simples fato de que Alexandre não vota ainda!
Malditos nós, que achamos que somos politizados o suficiente para escolher um governante com base em uma briga tão superficial entre direita e esquerda, quando não estamos fazendo nada para mudar, de verdade, a vida de Alexandres.
Malditos pais que são convencidos de 04 em 04 anos de que jogar piche na rua e dizer que fez asfalto é mais importante do que garantir o saneamento básico, porque afinal ninguém vê.
Malditas são as nossas conversas de bar, dentro de uma bolha, que enquanto tomamos vinho e discutimos qual lado político é melhor, não nos damos conta de que no final, todos estão do mesmo lado, mas que ninguém está ao lado de Alexandre.
Superficiais que somos! Tão inúteis.
Quem fará de Alexandre grande? Quem lhe dará a educação básica necessária para que ele possa mudar a realidade em que nasceu?
O panfleto ficou 2 dias preso no limpador do parabrisa, toda vez que André ensaiava arrancar, eu dizia que precisava contar pra ele a história daquele panfleto, mas ainda não tinha forças.
No domingo, finalmente, André o tirou sem que eu o visse. No domingo viajamos.
No domingo, André e eu tivemos uma conversa libertadora de quase 5h ininterruptas sobre o nosso papel na terra. Na vida de outras pessoas, na nossa vida.
Desde então, tenho tentado investir nosso tempo em ações pequenas, mas que geram algum tipo de impacto.
Desde então, passamos a pensar que não precisamos ter uma escola nossa para contribuir com a educação (era o nosso plano pro futuro), podemos começar a fazer isso agora com os recursos que temos, nosso tempo.
Desde então, discussões de redes sociais e toda a superficialidade já não me chamam mais a atenção. Aliás, as redes sociais têm afastado as pessoas. Ninguém percebe isso?
Fomos acordados para a realidade de que não precisamos de muito, nós só precisamos agir, agora.
Seja como pudermos, com o tempo e recurso que tivermos, estudando sobre coisas que podemos fazer, implantar, sugerir. Enfim, existe uma realidade acontecendo do outro lado da rua, com os nossos vizinhos, com a nossa comunidade, com a nossa cidade… se cada um olhar pro outro lado da avenida e fazer algo para mudar aquela realidade específica, só aquela, então com certeza ele já fez muito mais do que discutir sobre o partido A ou B em uma roda de bar.
Pude encontrar formas simples e rápidas de agir, sem esperar que um governo faça isso por Alexandre, ou sem esperar 15 anos para me aposentar e então começar fazer algo. Todos nós podemos fazer um pouco agora, não precisamos ir longe pra isso.
A infância, bem como a inocência de Alexandre dominou meu coração.
Tem um outro rap que me toca desde sempre e a letra vai ao encontro de minhas ações: “As granfinas enfiam a mão no fundo da sacola, jogam uma moeda, viram as costas e vão embora. Que ajuda é essa? Queira me explicar? Onde o cara nunca se levanta, continua no mesmo lugar”.
Eu sei que naquela noite eu não mudei a vida do Alexandre, me culpei noites a fio, mas posso dizer que Alexandre sem dúvidas transformou minha vida, me acordou para a realidade novamente, me trouxe de volta à superfície, e em todas as minhas próximas ações vou lembrar de que Alexandre, o Grande garoto, é a minha inspiração para não parar de fazer o máximo que eu puder fazer pelo outro nessa vida, todos os dias, em todas as oportunidades.
Nota para o futuro: Minha existência deve ser voltada para o próximo, eu nasci para isso, só precisava me reencontrar com a Priscila de 14 anos de idade, é nela que estava escondida toda a pureza da minha vontade de mudar o mundo.
Que nunca mais eu perca esse foco. Que nunca mais, eu me perca de mim.