
Outro dia eu me vi em um estado que raramente as pessoas vão conseguir me encontrar: indefesa e absolutamente vulnerável.
Nesta situação, acabei sendo exposta a contragosto e, desse desgosto, tirei a lição.
Em um momento de dor, me deixei envolver em uma trama cafona, onde alguém que, com a mesma maldade de quem obriga uma tartaruga indefesa a sair do casco a chutes e ponta-pés, me tirou da minha armadura de defesa – o silêncio e o sumiço – a combinação que me trás paz em momentos de caos.
Hoje, dias depois desse advento que me tirou do prumo por cerca de 40 horas, em uma manhã de chuva e grama aparada, me veio à mente o primeiro poema que decorei na escola, na minha sexta série, poema esse sempre que carreguei comigo e que agora acaba de ganhar outro sentido.
Seguem as falas do meu poeta favorito:
“Por que é que assim, com suas caras móveis e simiescas,
os vivos nos devassam, num cínico impudor?
Por que nos olham assim – como se fôramos cousas –
quando os nossos traços vão repousando, enfim,
na tranqüila dignidade da morte?
Por que é que eles, com a sua obscena curiosidade,
não respeitam o ato mais íntimo de nossa vida
– ato que deveria ser testemunhado apenas pelos Anjos?
Ah, que Deus me guarde na hora de minha morte, amém,
que Deus me guarde da humilhação desse espetáculo
e me livre de todos, de todos eles:
não quero os seus olhos pousando como moscas na minha cara.
Quero morrer na selva de algum país distante…
Quero morrer sozinho como um bicho!”
Sim, um poema mórbido, eu sei. Mas eu fui uma roqueira rebelde por toda minha adolescência e falar de morte era uma forma de conseguir consumir poemas – que por sinal eu amava – sem deixar a pose de subversiva de lado.
Pois bem, agora eis que vem o aprendizado:
Eu sempre achei que precisaria morrer para que, ao sair do corpo e assistir o meu velório, pudesse entender verdadeiramente o significado dessas palavras que seguem o tom de morbidez de Quintana. Mas não!
Assim como o poeta que, certamente, não psicografou tais palavras e, portanto, deve ter conhecido esse sentimento antes mesmo de seu último suspiro, eu também descobri que não se morre só uma vez, a morte não é só literal. Se morre também aos poucos e se morre um pouco de vez em quando, e tal como no poema, “os vivos não respeitam esse ato que deveria ser testemunhado apenas pelos anjos”.
Olhando agora para a lama que cobre o fundo do poço, eu compreendi que, diferente do poema, eu não só quero morrer na selva de algum país distante, mas também quero por lá, sozinha, como um bicho.
E assim vivendo, no escutar e vendo, tateando o sol.
Notas para o futuro: que um dia entendamos que a dor, bem como o silêncio do outro, é um lugar sagrado demais para ser invadido com o único objetivo de sanar sua vã curiosidade. Não tente entrar no santuário do outro, a menos que seja convidado.