Um palito de fósforo preso na guirlanda da cortina

Meu irmão e eu na casa de minha vó em algum ano da década de 90. =D

Quantas vidas são possíveis viver dentro de uma só? 

Você já teve vontade de trocar de vida? 

E de começar do zero? 

Vontade de ir pra um lugar onde ninguém te conheça, e recomeçar uma vida deixando tudo o que já vivenciou pra trás? 

E vontade de não vivido uma determinada vida? Já te ocorreu? 

As vezes eu tenho a sensação de que já vivi muitas vidas dentro dessa mesma a qual habito agora. 

Eu sei que a vida é feita de fases, mas aceitar isso seria simplificar demais. Fases não resume ou não traduz o que eu sinto quando digo que pareço ter vivido muitas vidas em uma, é como se eu já fosse uma alma velha presa há um corpo um pouco – e e apenas um pouco – mais jovem. 

Por vezes, eu até tento seguir a linha do senso comum e pensar que nós só compreenderemos a grande lição da vida quando chegarmos ao final dela.

Digo, é como um quebra cabeça de 2 mil peças, você vai juntando cada experiência pequena, uma aqui, outra lá, e vai descobrindo e aprendendo com cada uma delas pra só então no final, como uma grande epifania, ter a verdadeira noção do todo. 

Você vai desenrolando aos poucos um novelo de lã, tramando, passando cuidadosamente cada linha e, ao chegar ao final do tear, após arrematar, nasce um cachecol. Mas e quando se rompe a linha? Começamos um novo? Remendamos? Jogamos aquele fora e fingimos que ele nunca existiu?

Talvez eu finja que uma parte da minha vida não aconteceu.

É, eu sinto que vivenciei experiências tão fortes que, talvez como forma de proteção, eu optei por dividir aquilo como se tivesse ocorrido há uma vida atrás. Em outra vida, não nessa, em que eu sou feliz e aparento ter uma existência perfeita.

Não nessa aqui, em que eu tenho a minha casa, o meu trabalho, o meu carro, a Pucca, tenho bons amigos e um relacionamento saudável.

Em outra vida, bem distante. Há uma vida atrás, com pleonasmo mesmo.

Há uma vida, eu fui negligenciada. Há uma vida, eu fui abusada. Há uma vida, eu fui invalidada, mas não nessa.

Ao final de cada vida que vivi, não necessariamente foi sabedoria o que extrai, mas em todas elas foi aprendizado. A gente vai se construindo a cada dia, forjando, a base de dor e lágrimas o que um dia haveremos de ser.

Sim, a minha alma é velha. E, algumas vezes, me veem lembranças de uma vida que há muito já vivi. 

O que me tomou a mente hoje e me conduziu para essa reflexão, foi o fato de que em 2001, após atearem fogo na casa que eu vivia juntamente com minha mãe e o meu irmão, nós fomos salvos do descrédito popular por algo tão pequeno, mas de uma importância tão sublime: um palito de fósforo e uma tomada enrolada na guirlanda da cortina. 

Eu tinha cerca de 10 anos na época, minha mãe e eu estávamos sendo perseguidas e ameaçadas por um ser monstruoso que havia passado por nossas vidas causando uma devastação completa iniciada em roubo e apropriação indébita de nossa casa herdada de minha avó materna, seguido por abuso emocional; violência doméstica contra a mulher e, não satisfeito em nos tirar tudo aquilo que era material, findou-se arrancando a inocência de uma menininha de 09 anos por meio de tentativa de atentado ao pudor com violação da vítima. Vítima essa de olhos arregalados, sorriso inocente, ossos grandes e que “se desenvolveu tão rápido que nem parecia ser tão nova”… .

Embora eu tenha sido vítima direta de somente um dos crimes citados acima, todos eles permearam a minha infância e marcaram a minha alma de uma forma tão profunda que serão levados comigo até o fim da minha existência na terra, arrastados. Eles me perseguirão onde quer que eu esteja, seu sei.

Não importa quanta coisa linda meus olhos possam ver hoje aqui do alto dessa bela vida; o horror que um dia eles presenciaram jamais poderá ser apequenado, diminuído ou amenizado. O assombro daquela vida que eles enxergaram passar lentamente, como meros espectadores, sem ação ou reação alguma, permanecem e permeiam como a lembrança de um filme de terror da vida real. 

Quase um ano depois do estopim que causou o fim do relacionamento, aos 10 anos de idade, nós éramos perseguidas, minha mãe e eu, como se fôssemos nós as culpadas de toda aquela tragédia.

Nós que tínhamos que nos esconder, nós que tínhamos que nos proteger, nós que tínhamos que cuidar por onde andávamos porque a justiça foi, é, e sempre será falha com nós mulheres, independente da idade, de mamando a caducando.

A justiça falhou comigo e falhou com a minha mãe que hoje só está viva por “obra de um milagre”, segundo o médico que a atendeu numa madrugada, depois de ter sido atacada na rua com uma madeira e um objeto pontiagudo na ponta que perfumou centímetros abaixo da fonte dela. 

“Quem fez isso, fez pra matar”, nos disse o médico. Ele pode até pensar que estava ajudando a elucidar algum tipo de crime, mas para nós, aquela frase não poderia ser mais óbvia.

No entanto, nem isso foi o suficiente pra manter por mais de alguns meses atrás das grades o algoz que parecia ter apenas um objetivo na vida dele: acabar com a nossa. 

Nessa época, nós tivemos que mudar por muitas vezes em pouquíssimo tempo; moramos de favor em casas de desconhecidos e sempre que éramos descobertas o horror recomeçava. 

A casa que foi cenário dessa ocasião específica que irei contar, era a casa do seu João, uma simpática meia água de madeira tão confortável que fazia com que eu me sentisse morando em uma casa de boneca. 

O piso do chão já não era mais de cimento bruto como o da casa anterior, ela era de cimento queimado, então nós podíamos limpar e encerar aquele chão vermelhinho e tudo se mantinha organizado, com cheiro de lar, e de cera canário vermelha, em pasta.

Dos poucos sonhos que eu tinha quando era criança, dois sempre foram persistentes: morar em uma casa confortável, um lar; e ter um aparelho de som que rodasse CD. 

Bom, em 2001, eu ainda não tinha ganhado o mini Systen que meu pai iria me dar uns 2 ano depois; mas minha mãe tinha conseguido alugar a meia água roxa da 1705, e você não imagina qual o tamanho da minha felicidade. Ali eu vivi um pouco de vida normal com ela e meu irmão, naquela casinha de 3 cômodos, mas de um conforto inigualável

Pra comemorar a fase: casa nova, vida nova; minha mãe abriu um crediário numa loja de móveis e comprou uma televisão novinha, eu não me lembro de já ter tido uma TV nova antes dessa, então, na minha cabeça aquela foi a nossa primeira.

Junto com a tv, minha mãe impôs uma uma regra: “sempre que desligar, tem que tirar da tomada pra economizar energia e ai, ai, ai, se eu pegar essa tv ligada sem ninguém assistindo”. 

Quem conhece minha mãe sabe que ela costumava cumprir as promessas de ameaças. Risos de quem já levou muita peia no lombo por não dar a devida atenção às ordens. Hahaha

Na sala charmosa que nós estávamos montando, tinha um sofá de canto marrom (a coisa mais linda), uma mesinha de centro que acompanhava a mesma cor do sofá, e uma cortina florida na parede. 

Naquela casa, ficou estabelecido – sem que ninguém precisasse formalizar – que a guirlanda de madeira da cortina da sala, seria o lugar oficial para pendurarmos o cabo da tv sempre que ela estivesse desligada. 


Eu me lembro que, por um momento, a vida parecia ser boa novamente. 

Me recordo de um dia que cheguei em casa depois da escola, joguei a mochila no canto da sala e pulei no sofá marrom puxando o gancho o telefone fixo pra ligar pra uma amiga, super cena de novela Malhação, e não por acaso.

Também lembro que foi nessa casa que eu resolvi falsificar a assinatura da minha mãe pra assinar um bilhetinho maroto autorizando o mercado Aurora a vender 1 leite condensado e 1 pacote de bolacha recheada ao meu irmão. E antes que passe pela sua cabeça, já vou logo dizendo que não me arrependo dessas traquinagens. Afinal, que memória teria eu pra compartilhar agora, não fosse isso? 

Ainda foi nessa casa que protagonizamos um tombo até hoje memorável, meu irmão e eu. Foi enquanto eu andava de bicicleta na frente da casa carregando ele na garupa e resolvi perguntar: “duvida eu empinar?”

Ele duvidou. Eu empinei. E fomos os 3 pro chão. 

Ele, que se espatifou de costas na poeira. Eu, que caí por cima dele sem nenhuma cerimônia. E a magrela enferrujada de minha mãe, que virou por cima de nós dois. 

Parece que a infância tinha até sido pegada de volta, como se isso fosse possível. Mas pelo menos nesses lapsos, ela era real. 

Infelizmente, não demorou muito para os demônios voltarem a nos assombrar.

Em uma noite quente qualquer, começamos a ouvir pedras no telhado, depois elas começaram a acontecer durante as madrugadas, por diversas noites seguidas. Pedras nas paredes de madeira, gente mexendo no nosso portão. Era horrível viver sob a assombração dessa experiência.

Conviver com o medo e a insegurança naquela época era só uma questão de tempo, quanto tempo nós tínhamos até sermos descobertas e tudo recomeçar. 

Dessa vez não demorou muito…

Certo final de semana, meu tio Ademar nos chamou pra irmos pro sítio, um programa que eu nunca recusava por absolutamente nada. 

Sairíamos no sábado de madrugadinha e, para isso, meu irmão e eu precisávamos dormir na casa da minha vó na sexta, como um presságio bom, assim foi feito. 

Cheguei da escola na sexta no fim do dia, peguei minha muda de roupa, meu irmão, e fomos para casa da minha vó que ficava há algumas quadras dali. 

Na madrugada, já quase amanhecendo o dia, fomos acordados dizendo que a minha casa havia pegado fogo. 

Muito preocupada com a minha mãe e, conhecendo o potencial das ameaças que recebíamos, eu quis correr pra lá, nem lembro se alguém me levou ou se fui sozinha, mas me lembro perfeitamente da cena que encontrei. 

Ainda saía um pouco de fumaça da casa, metade do nosso lar (que nem era de propriedade nossa) estava queimada. 

Meu quarto onde dormia com meu irmão e a sala foram os pontos mais atingidos. 

Minha mãe, graças a Deus estava viva, porque dizer que ela estava bem, já seria um exagero. 

Depois disso, não lembro das minhas reações ou do que falei à minha mãe… é como se eu tivesse apagado a lembrança de algumas horas para guardar espaço no meu disco rígido do que viria a seguir; a desconfiança e o desamparo de quem deveria nos proteger.

Nós já tínhamos diversos boletins de ocorrência registrado contra essa pessoa específica por todos os crimes que já citei anteriormente, além disso, minha mãe já tinha conseguido uma medida protetiva perante as ameaças que recebíamos e, mesmo com tudo isso acontecendo, o perito que tirava fotos da casa, parcialmente consumida pelo fogo, ousou dizer: “pode ter sido algum curto, era a sala, devia ter eletrônicos aqui”.

Eu lembro que tinha só 10 anos na época e deduzi: “você só pode tá de brincadeira de achar que isso aqui foi um curto baseado em todo contexto da nossa vida. É sério?!”

Não menos que rapidamente, pensamentos intrusivos e atormentadores se empilharam na mente de uma criança que precisou crescer cedo demais: “E agora? Essa casa nem nossa é. Nós male mal temos dinheiro pro aluguel, como vamos pagar uma casa que não é nossa, e se for comprovado que foi um descuido? Não foi, eu sei que não foi.”

Nisso, me lembro de ouvir o esbravejo da minha mãe que cortava meus pensamentos dizendo que não era possível ser um curto, porque na nossa sala só tinha uma tv e ela estava desligada da tomada. 

O imbecil, ao invés de procurar por algo, devia estar muito mais interessado em ir tomar café da manhã, porque revidou minha mãe dizendo: “a senhora pode ter esquecido”. 

Me lembro de pensar: “Ela não esqueceria. O único lugar possível pra esse cabo estar, era na guirlanda da cortina”. 

Minha mãe até disse isso a ele, mas foi irrevogavelmente ignorada.

Porém, algo não passaria batido naquela manhã, pois um objeto de uma importância inestimável representou qualquer fala que pudesse ser contestada naquele momento. 

No chão, no meio das cinzas queimadas, junto a um monte de pó e do que sobrou de uma mesinha de centro marrom, foi encontrada uma guirlanda de madeira e, enrolada a ela, derretido pelo fogo e grudado na madeira, o cabo de uma tv, cuja somente a primeira parcela da prestação havia sido paga. 

Depois desse acontecimento – que minha mãe chama até hoje de milagre e eu não encontro palavra melhor para definir – aquele imprestável precisou adiar o café da manhã e fazer um trabalho um pouco melhor. 

Para a surpresa (somente do perito), logo em seguida foi encontrado um palito de fósforo e outros objetos que corroboraram a versão que minha mãe tentava a todo momento defender, de que só havia um culpado por tudo aquilo; que a medida protetiva era falha; que aquela situação se caracterizava como a reincidência de uma tentativa de homicídio, e que se nada fosse feito, ele conseguiria concluir o que obstinadamente vinha tentando. 

A quem possa se interessar, nada foi feito. 

Depois disso, minha única boa recordação que guardo desse fatídico dia, é a do meu tio Ademar passando por lá de moto pra ver como estávamos e se precisávamos de algo. 

A ida pro sítio subiu no telhado naquele sábado.

O telhado pegou fogo e quase nada restou, além de memórias de uma vida passada. Tão distante e tão perto. Quase tangível em madrugadas que perco o sono e a paz, rememorando peças de um quebra-cabeças que um dia, espero que longe, será finalizado com êxito e glória.

Eu já tive certezas absolutas, das quais me vi despida um tempo depois. 

Também já tive dúvidas monumentais que sigo buscando respondê-las.

Eu sempre evitei reviver episódios tristes da minha vida – e não foram poucos -, sempre tive muito receio de que essa parte da minha história, bem como todas as mazelas que tive que passar, acabassem evidenciando o papel de vítima que muitas vezes a vida insistiu em me colocar, e que isso confrontasse a mulher forte que eu precisei me tornar. Mas quanta besteira! Quanta tolice infantil.

Fingir que a nossa própria história não existiu, não faz com que os fantasmas desapareçam, é preciso olhá-los nos olhos, no fundo daqueles olhos escuros pra dizer: “acabou aqui”.

Acabou em mim.

Não há de se ter mais ninguém que você possa assombrar.

Notas para o futuro: Continue! Se não por você, por ela. Por nossos olhos que seguem grandes e arregalados. Seja você a força protetora que ela orava pedindo e acreditando que um dia iria aparecer.

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